Miriam Prochnow e Wigold Bertoldo Schaffer*
Nada melhor para tentar entender o momento que estamos vivendo do que ouvir uma música
que retrata a situação. No caso das discussões sobre o Código Florestal, essa música poderia ser
“o som do silêncio” (Sounds of silence), interpretada por Simon & Garfunkel, já no início dos
anos 60, coincidentemente na década em que foi aprovado o atual texto do Código Florestal (Lei
4.771/1965). A música começa fazendo uma saudação: “olá escuridão, minha velha amiga” e
fala de tempos em que as pessoas conversam sem falar e ouvem sem escutar. De tempos em que
canções são escritas, mas não há vozes para compartilhá-las. Fala de como o som do silêncio
pode crescer como um câncer e ninguém se importar ou ousar desafiá-lo, porque as pessoas
seguem um padrão pré-estabelecido, que julgam confortável. Fala de tempos em que se tenta
oferecer a ajuda, mostrar o caminho, mas as palavras caem como gotas silenciosas. Ou
seja...fala dos tempos atuais! Dos tempos em que alguns “ruralistas” apostam na desinformação
para criar confusão e discórdia e não querem resolver os problemas reais.
A barreira do silêncio, da apatia e da desinformação precisa ser vencida. Seria bom se os
ruralistas trabalhassem verdadeiramente para resolver as possíveis dificuldades burocráticas que
implicam em custos e dificultam a aplicação efetiva do atual Código Florestal. Na verdade, são
alguns “ruralistas intransigentes” que não querem resolver estes problemas ou entraves, pois
deles se beneficiam e tiram vantagens em proveito próprio, mas tentam fazer parecer que a voz
é da maioria. Não raro apresentam informações distorcidas ou mentirosas e até fazem ameaças e
chantagens. Felizmente, a ala dos “ruralistas intransigentes”, é hoje minoria dentro de um
pujante e moderno setor agropecuário no Brasil, que precisa reagir e romper o silêncio. Vejamos
alguns exemplos de palavras que já foram ditas por muitos, mas que ainda não foram ouvidas.
O Código Florestal (Lei 4.771, de 1965) atualizou e aprimorou o Código de 1934, portanto, é
uma norma legal com 80 anos de existência, tempo suficiente para que todos pudessem se
adequar à lei. A responsabilidade pela não adequação de parcela importante dos imóveis rurais e
urbanos aos preceitos legais estabelecidos no Código Florestal, especialmente a
proteção/recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a
conservação/recuperação da Reserva Legal (RL) é dos proprietários e possuidores de imóveis.
Só não regularizou seu imóvel aquele que apostou na impunidade e na ineficiência do estado.
Cabe também parcela de responsabilidade ao próprio Estado (aqui falando dos três poderes) que
não trabalharam ou não fiscalizaram e nem exigiram a implementação do Código.
Conforme destacou Armando Monteiro Filho, Ministro da Agricultura, e responsável pela
elaboração do Código Florestal de 1965, trata-se de “uma lei objetiva, fácil de ser entendida e
mais fácil ainda de ser aplicada”. Lembramos aqui de uma discussão presenciada num
seminário sobre as metragens das APPs a serem preservadas ao longo dos rios. Havia na mesa
um juiz de direito, um engenheiro agrônomo e um biólogo. O engenheiro agrônomo defendia a
tese de que essas metragens deveriam ser estabelecidas caso-a-caso, com a utilização de
diferentes critérios agronômicos, biológicos, geotécnicos e botânicos. O biólogo discordava
alegando dificuldades na determinação caso-a-caso. Num determinado momento levantou um
agricultor, disse ser uma pessoa humilde e pediu a palavra: “desculpe doutor, mas eu prefiro as
metragens”...como assim, estranhou o engenheiro, afinal eu estava defendendo o seu lado. “sabe
doutor, 30 metros é o mesmo que 30 cabos de enxada e até eu sei medir. Se for no caso-a-caso,
vou ter que contratar técnicos e pagar pra medir e aí eu não tenho dinheiro pra isso”. O juiz de
direito aproveitou a deixa e declarou: “pois é, 30 metros até mesmo juiz sabe medir”. Assim, a
discussão sobre a pertinência ou não dos parâmetros métricos acabou neste ponto. Moral da
história, nada mais simples e fácil de entender e aplicar do que as metragens e percentuais
estabelecidos para as APPs e para a RL, como muito bem frisou o Ministro da Agricultura que
coordenou a elaboração do Código na década de 1960. Só não cumpre ou não aplica quem não
quer.
Os “ruralistas” também costumam repetir algumas inverdades à exaustão. Uma dessas mentiras
é a de que o atual Código Florestal (Lei 4.771/1965) foi elaborado por ambientalistas e
biólogos. O ante-projeto do atual código foi elaborado por um grupo de trabalho constituído e
coordenado pelo Ministro da Agricultura Armando Monteiro Filho. O grupo era formado por
engenheiros agrônomos e advogados e não teve entre seus integrantes representantes de setores
ligados à conservação da biodiversidade ou de ambientalistas (até porque naquela época não
existiam órgãos como o Ministério do Meio Ambiente, Ibama, ou comissões de meio ambiente
no Congresso Nacional, nem Greenpeace ou outras ONGs ambientais. A FBCN primeira ONG
ambientalista do Brasil estava apenas engatinhando). Foi uma lei elaborada para proteger a
agricultura e a economia do país e garantir o bem-estar social de todos os brasileiros, do campo
e das cidades. Uma pena que os “ruralistas” não conseguiram aprender nada com o passado.
Vale a pena recordar as palavras do então Ministro da Agricultura:
“Há um clamor nacional contra o descaso em que se encontra o
problema florestal no Brasil, gerando calamidades cada vez mais graves
e mais nocivas à economia do país.
A agricultura itinerante continua se desenvolvendo segundo os métodos
primitivos dos primeiros anos do descobrimento. Chega o agricultor,
derruba e queima as matas, sem indagar se elas são necessárias à
conservação da feracidade do solo ou do regime das águas.
Urge, pois, a elaboração de uma lei objetiva, fácil de ser entendida e
mais fácil ainda de ser aplicada, capaz de mobilizar a opinião pública
nacional para encarar corretamente o tratamento da floresta.
Tendo em conta este quadro, surgiu a compreensão da necessidade de
atualizar-se e de dar, ao Código Florestal, as características de lei
adequada exigida por panorama tão dramático.
Assim como certas matas seguram pedras que ameaçam rolar, outras
protegem fontes que poderiam secar, outras conservam o calado de um
rio que poderia deixar de ser navegável etc. São restrições impostas pela
própria natureza ao uso da terra, ditadas pelo bem-estar social”.
Como se vê, naquela época, o som do silêncio foi rompido: as palavras foram ouvidas e a
realidade foi enxergada com clareza, mas infelizmente essa situação não perdurou. Nos atuais
dias de escuridão, um passarinho, desses que juntamente com seu amigo mico-leão-dourado
acompanha o desenrolar das discussões do Código Florestal nos corredores do Congresso
Nacional ouviu um intrigante diálogo. O diálogo aconteceu entre um experiente e respeitado
técnico do setor agropecuário e um jornalista, durante a tumultuada sessão de discussão do
Código que começou as 09h00 e terminou as 24h00 do dia 10 de maio de 2011, sem votação,
em função de alterações espúrias, ou “pegadinhas” (como o episódio ficou conhecido),
introduzidas no texto na escuridão dos corredores da Câmara, após o fechamento de um texto de
consenso entre o relator e o governo.
O técnico fez a seguinte pergunta em off ao jornalista: “Você já viu o monstro ser morto no
primeiro minuto de um filme?” O jornalista obviamente respondeu que não, mas emendou: “O
que você quer dizer com isso?” Ouviu a seguinte resposta: “Quero dizer que neste caso do
Código Florestal o monstro é a disseminação do medo, a disseminação de que os agricultores
estão todos na ilegalidade e serão multados e presos, que os pequenos produtores vão perder
suas terras, que os ambientalistas querem internacionalizar a Amazônia, além de outras
desinformações. Isso cria um clima de medo, que obviamente beneficia a alguns.”
E quem dissemina esse medo perguntou o jornalista? “São alguns parlamentares “ruralistas”,
e eles fazem isso não porque estão preocupados em resolver o problema da agricultura, não
porque querem um Código Florestal aprimorado, moderno, facilmente aplicável, que realmente
leve a agricultura brasileira à vanguarda da sustentabilidade ambiental com alta
produtividade. Eles fazem isso porque se beneficiam disso eleitoralmente. Têm alguns que já
estão há pelo menos 4 mandatos se elegendo e reelegendo com esse discurso de que vão
resolver o problema do “pequeno agricultor” através da modificação ou revogação do Código
Florestal.”
O mesmo técnico emendou dizendo que a proposta do Aldo, tão radicalmente defendida por
esses “ruralistas” como a solução de todos os males da agricultura brasileira, na verdade vai
trazer mais problemas do que soluções práticas aos agricultores. Usou adjetivos como: essa
proposta do Aldo é burocratizante, confusa, contraditória, dúbia, difícil de entender e aplicar e
ainda vai sofrer emendas e possíveis vetos, o que vai transformar o Código daí resultante, se for
aprovado, num verdadeiro Frankstein. É nisso que eles apostam, pois um código ruim e difícil
de aplicar vai permitir que no dia seguinte à sansão presidencial eles possam voltar às suas
“bases” e reiniciar o processo de disseminação do medo, pois o monstro não foi morto no
primeiro filme, apenas foi espantado e fugiu para o interior da floresta...necessitando de um
segundo, terceiro, talvez quarto filme para morrer...isso se até lá houver floresta onde ele possa
se esconder. Ou seja, quanto mais o monstro viver melhor pra eles, não para a agricultura e os
agricultores, arrematou o técnico.
Por isso, os que falam, ouvem e enxergam de verdade sabem que os verdadeiros atores precisam
ocupar a cena e dirigir o enredo a um final feliz.Tem muitos agricultores que sempre cumpriram
a lei, tem terras altamente produtivas, geram empregos e riquezas para o país e tudo isso com
respeito ao meio ambiente, com o cumprimento do Código Florestal, mantendo APPs
preservadas e Reserva Legal preservada e averbada em cartório. Tem outro enorme contingente
de agropecuaristas que já perceberam a importância da adequação ambiental para suas
atividades e negócios e que estão em busca da regularização, incluindo aí a averbação da RL e a
recomposição de áreas faltantes de RL ou APP. Infelizmente a proposta de Código apresentada
pelo relator da matéria, pouco dialoga ou reconhece esses esforços. Até mesmo Blairo Maggi,
em entrevista ao Congresso em Foco, criticou a estratégia adotada pelo deputado Aldo Rebelo
(PCdoB-SP), relator do código na Câmara: “Não concordo com o discurso nacionalista que
coloca em lados opostos ONGs ambientalistas e produtores rurais. Acho errado dizer que se a
Europa desmatou, então nós também podemos desmatar. Podemos ser tão importantes quanto
os europeus, sem repetir o que eles fizeram”.
Um dos pontos mais perversos do relatório do Aldo é a anistia às multas e à degradação
pretérita para aqueles detentores de até 04 módulos fiscais. Isso cria duas classes de produtores:
aqueles que cumpriram a lei e vão ter que continuar cumprindo e aqueles que descumpriram a
lei e vão ter anistia das punições recebidas e nenhuma obrigação ambiental no futuro. São dois
pesos para a mesma medida, contrariando a Constituição Federal que determina que todos sejam
iguais perante a lei. Imaginem a discórdia entre vizinhos, onde um, em situação igual ao outro,
vai ter que manter 20% ou 80% de Reserva Legal e o outro que desmatou tudo não vai precisar
manter e nem recuperar nada.
Marcio Santilli, no artigo “A aberração dos quatro módulos fiscais” disponível na integra em
(www.socioambiental.org/nsa/direto/direto_html?codigo=2011-05-09-093002) demonstra com
fartos exemplos a falta de lógica e de qualquer critério técnico para a utilização dessa figura
jurídica, que além de tudo vai aprofundar o estabelecimento de duas classes de produtores
rurais. Um exemplo citado por Santilli: “Uma propriedade rural com 100 hectares, que tenha
desmatado a sua área de reserva legal, estará isenta de recuperá-la se estiver situada no
município de Tietê, mas não estará isenta e estará obrigada a recuperar ou compensar 20
hectares se estiver situada no município de Piracicaba, ambos localizados numa mesma subregião
do estado de São Paulo”.
Alguns dos mais intransigentes e truculentos “ruralistas” são do estado de Santa Catarina. Eles
alardeiam que o cumprimento do Código Florestal inviabilizará a atividade de aproximadamente
180 mil pequenos produtores rurais no estado, cujas plantações de uvas e maçãs estariam todas
em APPs de topo de morro ou encostas de mais de 45º. Como isso pode ser verdade se apenas
4,6% do território catarinense se encontra em declividades entre 25 e 450 e que somente 0,19%
está em áreas com mais de 450? Eles dizem também que o arroz desaparecerá se os agricultores
tiverem que recuperar as APPs, entre outras inverdades. Vamos aos fatos reais.
O recém divulgado Inventário Florestal de Santa Catarina, elaborado em parceria entre
Universidades (UFSC, FURB), Governo do Estado e Serviço Florestal Brasileiro, constatou que
o estado possui 36% de cobertura florestal nativa (em diversos estágios de sucessão),
demonstrando claramente que naquele estado, onde a RL exigida pelo Código Florestal é de
20% e estima-se que as APPs representem aproximadamente 10 a 12% do território, existe
cobertura florestal nativa suficiente para resolver o problema da Reserva Legal, dentro do
próprio estado.
Um projeto desenvolvido pela Associação dos Municípios do Alto Vale do Itajaí (Amavi), em
parceria com as 28 prefeituras da região, e apoio da Fundação do Meio Ambiente de Santa
Catarina (Fatma), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), da The Nature Conservancy
(TNC), da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), do Fundo
Brasileiro da Biodiversidade (Funbio) e do Governo Alemão, está mapeando e promovendo a
averbação em cartório das Reservas Legais de 45 mil pequenos produtores rurais da região. Foi
desenvolvido um sistema informatizado onde o agricultor se apresenta no balcão das prefeituras
com a escritura do imóvel e no mesmo dia pode sair com a sua RL averbada em cartório, sem
qualquer custo ao produtor.
Um dos motivos que levou os prefeitos a apoiar o projeto foi a constatação de que naquela
região, colonizada há 100 anos, mais de 90% dos imóveis dos pequenos produtores ainda
possuíam remanescentes florestais em percentual suficiente para averbar a RL e que mesmo nos
outros 10% dos imóveis havia ainda alguns remanescentes. Ou seja, de cada 10 agricultores
apenas um teria que recuperar alguma área. O projeto é uma amostra significativa que desmente
o discurso ‘ruralista’ de que os pequenos agricultores de Santa Catarina vão ficar inviabilizados
se tiverem que cumprir o Código Florestal. Um estudo de caso no município de Agronômica
demonstrou que apenas 8% da lavoura de arroz irrigado está na faixa de APP de 30 metros,
percentual que seria reduzido a 0,8% se fosse admitida a proposta já acordada pelo governo com
o relator, de reduzir para 15 metros em cada lado do rio, exclusivamente para fins de
recuperação, a APP dos rios de até 10 metros de largura.
Enfim, no caso do Código Florestal, não queremos mais filmes de monstros, queremos no
enredo e na tela, aqueles que tem dado exemplo ao país e que tem mostrado na prática que é
possível cumprir a lei e que é possível manter um alta produtividade agropecuária junto com a
preservação ambiental. Não podemos deixar que o “som do silêncio” prevaleça nesse momento,
porque se isso acontecer, em breve o som das motosserras será ensurdecedor.
* Miriam Prochnow, 46 anos, Pedagoda, Especialista em Ecologia, é Coordenadora de Políticas Públicas
da Apremavi e Secretária Executiva do Diálogo Florestal.
Wigold B. Schaffer, 51 anos, é formado em Administração de Empresas, foi pequeno produtor rural num
imóvel de 25 ha em Santa Catarina, é consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD).
terça-feira, 24 de maio de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Você faz parte do blogger: Conceito e Provocações!