quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Democracia

Muitos dos objetos de reflexão teórica e de investigação empírica das ciências sociais sofrem, é claro, as injunções das circunstâncias históricas em que emergem, como temas preferenciais da pauta acadêmica. A democracia – "essa velha senhora", como a chamou Bobbio – não tem sido exceção, na Ciência Política que se pratica entre nós.

É certo que a história nunca a deixou em paz. Na condição de democracia liberal ou democracia representativa, que chegou com o Estado constitucional do XIX, sofreu a crítica das palavras e das armas, por parte do comunismo e especialmente do nazi-fascismo, na primeira metade do XX. No segundo pós-guerra, quando parecia triunfante, talvez definitiva, sofreu novos achaques quando um arquipélago de regimes autoritários aflorou na Europa e na América Latina, nos anos sessenta e setenta.

Quase concomitantemente, os arranjos institucionais do chamado corporativismo societal, que haviam viabilizado direitos sociais em larga escala no auge do período fordisto-keynesiano, foram postos em questão pela crise fiscal do Welfare State. As políticas de "ajuste estrutural" que se seguiram, no capitalismo central, não apenas questionaram direitos, mas valeram-se de instrumentos institucionais de caráter francamente autoritário. Do mesmo modo, na periferia capitalista, nas décadas de 1980 e 1990, a institucionalização de uma ordem democrática após as "transições desde regimes autoritários" patinou em meio às dívidas externas e à corrosão inflacionária (resultantes da crise do modelo desenvolvimentista) em muitos países. A dependência que então se estabeleceu desses países para com os organismos multilaterais de financiamento redundou também em desregulamentação de direitos e novos instrumentos autoritários de gestão.

Com tantas idas e vindas na ossatura das democracias mundo afora, não é de admirar que a literatura especializada, mesmo considerando-se as obras mais influentes, tenha sido marcada pelas injunções conjunturais.

É verdade que Robert Dahl demonstrou, em seu Poliarquia (DAHL, 1971), que ao longo do século XX aumentou o número de países democráticos, apesar do desenvolvimento desigual dos eixos da institucionalização e da participação. Mas é bom lembrar que a assertiva refere-se a um conceito "mínimo" de democracia, estritamente político. Quando agregamos a dimensão econômico-social do problema, fica difícil pensar no século XX como o "século dos direitos sociais", em seqüência ao XVIII dos direitos civis e ao XIX dos políticos, conforme a célebre generalização de T. H. Marshall em seu Cidadania, classe social e status (MARSHALL, 1967). Essa incompletude no desenvolvimento da cidadania (se é que o termo "incompletude" faz algum sentido) certamente jogou muita água fria nas expectativas mais otimistas sobre o enraizamento e o aprofundamento da democracia.

É claro que em um cenário assim não poderiam faltar, na literatura do último quartel do século XX, questionamentos à eficácia do regime democrático em processar demandas sociais e à sua capacidade de dar-lhes respostas efetivas sem "sobrecarregar" o sistema e sem gerar "paralisia decisória" ou, pior ainda, "ingovernabilidade". Samuel Huntington foi peremptório a respeito, em The Crisis of Democracy (CROZIER, HUNTINGTON & WATANUKI, 1975): democracia boa é democracia bem comportada. Para ele, a estabilidade e a longevidade dos regimes democráticos dependeria da prevalência de certa dose de "apatia política" da sociedade. Na América Latina, inclusive no Brasil, a mobilização "excessiva" dos setores populares, como se sabe, foi um dos elementos do caldo de cultura que gerou os golpes autoritários.

É assim que a literatura sobre transição de regime viu-se obrigada a levar em conta essa dimensão societal dos conflitos da transição. Isso ocorreu no paradigmático Transições do regime autoritário (O'DONNELL & SCHMITTER, 1988), lançada nos anos 1980, embora o modelo "transição-consolidação" democráticas tenha induzido uma preocupação predominantemente institucional. O que importava naquele momento, dadas as injunções conjunturais, era descrever a dinâmica dos processos de desmontagem paulatina e substituição gradual das engrenagens dos regimes de exceção e estabelecer qual o ponto a partir do que seria possível falar em restabelecimento da "normalidade" do regime democrático. Nesse sentido, mesmo quando a dimensão social e econômica era levada em conta, o que importava era definir o grau de permeabilidade do sistema político às demandas societais e sua capacidade de processamento.

Mas, é claro, nem só de instituições é feita a democracia. E como a Coruja de Minerva só levanta vôo ao anoitecer, parece que estamos chegando a um momento em que o distanciamento desses processos de transição de regime, bem como a diversificação temática da produção em Ciência Política no Brasil, têm permitido um tratamento multifacetado do fenômeno democrático.

Hoje talvez tenhamos mais ouvidos para ouvir quando Fábio Wanderley Reis lembra-nos que, embora possamos utilizar concepções "minimalistas" de democracia em nossos experimentos intelectuais, "se houver grande desigualdade social, como a que existe no Brasil, por exemplo, isso naturalmente vai significar que diferentes indivíduos estarão controlando quantidades muito desiguais de recursos na esfera privada, e que haverá, portanto, um desequilíbrio privado de poder que tornará problemático o exercício efetivo dos direitos políticos e civis" (REIS, 2003, p. 12).

Súmula desse despertar para as múltiplas facetas da questão, Democracia: teoria e prática, organizado por Renato Perissinotto e Mário Fuks, a partir de um seminário realizado na Universidade Federal do Paraná, não tem o mérito único de atentar para aspectos econômicos e sociais, além dos político-institucionais. Talvez a comunicação mais representativa dos esforços contidos no livro seja a de Renato Lessa, ao apontar a necessidade de resgatar a invenção intelectual caudatária da tradição da Filosofia Política, como complemento indispensável à investigação empírica acerca da democracia. Afinal, "a história da Ciência Política é em grande medida uma história de tentativas de elucidação de fatos e artefatos postos no mundo por teorias. Esse é o ponto que eu acho mais interessante: fatos e artefatos institucionais que decorrem de invenções intelectuais. Não há razões históricas, teóricas ou filosóficas capazes de sustentar a separação da dimensão empírica com relação à dimensão filosófica, normativa e especulativa da teoria política. Se nós pensarmos um pouco sobre a história dos nossos objetos, essa história vai revelar que eles decorrem em grande medida de invenções" (LESSA, 2003, p. 40; grifos no original).

É assim, de fato, que os esforços desdobram-se ao longo do volume: democracia como invenção cultural, como invenção institucional, como invenção de modos de vida.

O próprio capítulo dedicado ao problema institucional, centrado no caso do sistema partidário, é prenhe dessa perspectiva geral. Fernando Limonge sublinha o fato de que a engenharia de reformas institucionais proposta por uma certa vertente da Ciência Política brasileira após o declínio da literatura sobre "transição" e "consolidação" ancora-se, de modo inconfesso, justamente na concepção segundo a qual é preciso forjar instituições que moderem o "excesso de demandas" para garantir a "governabilidade". "O ponto de apoio das propostas de engenharia institucional é o de que os interesses e os valores das massas que ingressam em um sistema político em democratização conspiram contra a manutenção dessa mesma ordem. As demandas das massas não podem ser atendidas. A condição para a preservação da ordem democrática é a moderação dessas demandas. Para isso, segundo essa visão, cabe desenhar as instituições adequadas, instituições capazes de neutralizar e moderar a pressão das massas" (LIMONGE, 2003, p. 65). O autor faz a crítica dessa literatura conservadora, desnudando as "invenções intelectuais" que estão na raiz dos "artefatos institucionais" propostos pelos engenheiros.

Complementarmente, o eixo da intervenção de Evelina Dagnino (2003) está posto na constituição de espaços públicos de participação social nos processos de tomada de decisão políticos, tanto os destinados a colocar em pauta novos temas à discussão pública quanto os destinados a constituírem-se em canais institucionais de absorção e processamento de demandas. Na fala de Dagnino os movimentos não são observados apenas em sua faceta disruptiva com relação à ordem autoritária, mas como construtores de espaços novos de participação política. O que se destaca é justamente o fato de que a incorporação da participação social em contextos democráticos pode redundar em invenção institucional – invenção que deve ser acompanhada do apoio oferecido pela "crença em sua legitimidade", para usar a expressão weberiana. Nas palavras de Marcello Baquero, "os dilemas atuais do Brasil, no campo da consolidação plena da cidadania, não podem ser resolvidos única e exclusivamente pela institucionalização de procedimentos chamados democráticos, mas também por um processo que proporcione a construção de uma base normativa de apoio e valorização dessas instituições" (BAQUERO, 2003, p. 134).

Não há aqui espaço para um comentário circunstanciado acerca da perspectiva de cada uma das intervenções reunidas no livro. Penso que o raciocínio acima vale para a discussão sobre implementação de políticas sociais (de Marta Arretche), sobre problemas urbanos (de Luiz Ribeiro e Orlando Santos Jr.) e para os estudos de caso sobre conselhos gestores de políticas públicas, no Paraná (de Renato Perissinoto e de Mário Fuks) e em Porto Alegre (de Soraya Côrtes).

Mesmo contando com contribuições de acadêmicos de formações amplamente variadas, a convergência básica da coletânea está no desapego dos autores a modelos pré-estabelecidos e na ousadia do pensamento.

O livro é, em suma, um belo retrato do refinamento a que pode chegar a Ciência Política no tratamento do fenômeno democrático, seja ontologicamente – ao destacar em conjunto suas dimensões político-institucional, social, cultural etc. –, seja heuristicamente – ao assinalar a importância vital da convergência entre os instrumentos de investigação empírica e a invenção filosófica.

Fonte:

RODRIGUES, Alberto Tosi, A democracia como invenção política

Revista de Sociologia e Política

Print version ISSN 0104-4478

Rev. Sociol. Polit. no.22 Curitiba June 2004.

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782004000100015&script=sci_arttext

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você faz parte do blogger: Conceito e Provocações!