terça-feira, 30 de novembro de 2010

Por que Jesus pode entrar na escola e Exu não pode?

Este é um artigo de Stela Guedes Caputo

No dia 27 de outubro de 2009, um jornal carioca destacou o caso da professora Maria Cristina Marques proibida de dar aulas em uma escola municipal, no Rio, porque utilizava o livro “Lendas de Exu”. A professora é umbandista e a diretora dessa escola é evangélica. Maria Cristina relatou diversas humilhações, desde ser acusada por mães de alunos de fazer “apologia ao Diabo” à colocação de um provérbio bíblico na sala dos professores chamando-a de mentirosa. Ao lerem a notícia deste caso, certamente muitos sentiram na pele as humilhações sofridas por Maria Cristina. Isso porque é muito comum que professores e professoras, alunos e alunas praticantes de candomblé ou umbanda sejam discriminados nas escolas.

A questão é complexa e podemos fazer muitas perguntas a respeito, mas farei aqui apenas uma: por que Jesus pode entrar na escola e Exu não pode? Por que um Jesus louro, coberto por uma túnica branca, pode estar em um dos livros da coleção para o Ensino Religioso católico, destinada à rede pública e lançada em 2007 pela Cúria Diocesana? A resposta que tenho não agrada. Exu não entra na escola porque este país é racista e, por isso, o racismo está presente na escola. Também acredito que atravessamos uma fase de avanço significativo dos setores conservadores na educação pública. A manutenção da oferta do ensino religioso na Constituição de 88, a aprovação deste como confessional no Rio, o lançamento dos livros didáticos católicos em 2007, a Concordata Brasil-Vaticano aprovada pelo Senado em outubro deste ano. Tudo parece fragmentado, mas não é. Trata-se de vitórias lentas e sigilosas que ampliam, reforçam e legitimam as circunstâncias necessárias para que a discriminação sofrida por Maria Cristina continue sendo uma prática bastante comum em nossas escolas públicas.

A Mãe-de-santo e escritora Beata de Yemanjá, acredita que a discriminação de sua religião acontece porque “pensam que o Brasil é uma coisa só. Por isso nos discriminam e a nossas religiões. Isso é racismo”, diz ela. O pesquisador Antônio Sérgio Guimarães concorda e defende em diversos livros que qualquer estudo sobre racismo em nosso país deve começar por notar que, aqui, o racismo foi, até recentemente, um tabu e que os brasileiros se imaginam numa democracia racial, fonte de orgulho nacional que serve como prova de nosso status de povo civilizado. Para este autor, essa pretensão a um anti-racismo institucional e as regras de pertença nacional suprimiram referências a sentimentos étnicos, raciais e comunitários, contribuindo para a nação brasileira imaginada numa conformidade cultural em termos de religião, raça, etnicidade e língua. É por isso que este autor, entre outros, acha que o racismo brasileiro é do tipo heterofóbico, ou seja, um racismo que é a negação absoluta das diferenças, que pressupõe uma avaliação negativa de toda diferença, implicando um ideal (explícito ou não) de homogeneidade (ou uma coisa só, como diz Beata).

Quando a diretora de uma escola proíbe um livro de lendas africanas ela quer apagar a diversidade presente na sociedade e na escola, quer silenciar culturas não hegemônicas, como as afro-descendentes. Mas como, se a professora discriminada é branca? A professora é branca, mas Exu é negro. Um poderoso e imenso orixá negro. É o orixá mais próximo dos seres humanos porque representa a vontade, o desejo, a sexualidade, a dúvida. Por que esses sentimentos não são bem-vindos na escola? Por que a igreja católica tratou de associá-lo ao mal e ao Diabo (ao seu Diabo) e muitas escolas incorporam essa lógica conservadora, moralista, hipócrita e racista. Exu, no livro proibido, afirma que este país tem negros com diferentes culturas que se entendidas como modos de vida, podem incluir diferentes modos de ver, crer, sentir, entender e explicar a vida. Isso não pode, porque na escola só entra o Jesus lourinho dos livros didáticos católicos (esses são bem-vindos). Positivo foi que muitos professores e professoras se manifestaram contra o ocorrido. Além disso, a Secretaria Municipal de Macaé publicou nota criticando a discriminação e apoiando a professora, o que evidencia, da mesma forma, que a escola não é “uma coisa só”. Por isso, é nas suas tensões cotidianas que devemos fazer, também cotidianamente, a luta contra o racismo de todo tipo, inclusive este, disfarçado de intolerância religiosa.

Para encerrar podemos fazer novas perguntas: a professora silenciada lecionava literatura. Digamos que ensinasse História da África, como ensinar essa disciplina tornada obrigatória? Amputando suas culturas, entre elas, o candomblé e seu riquíssimo panteão de orixás? Alguém questiona quando a disciplina de História fala do catolicismo? Da reforma protestante? Esses conteúdos fazem parte do ensino regular de História (por isso, entre outras coisas, o Ensino Religioso não é necessário). As culturas com suas religiões também fazem parte do ensino de História da África. Como é que vai ser? Pais e professores arrancarão as páginas desses livros? Ou eles já serão confeccionados mutilados pelo racismo? Respondo com a saudação ao orixá excluído da escola (só podia ser ele a armar tudo isso): Laro oyê Exu! Para que ele traga mais confusão e com ela, o movimento, a comunicação e a transformação onde reina.

http://meujazz.wordpress.com/2010/01/24/por-que-jesus-pode-entrar-na-escola-e-exu-nao-pode/

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