quarta-feira, 18 de agosto de 2010

8- Desenvolvimento e subdesenvolvimento – Celso Furtado;

Nascido em 1920, graduado em direito no Brasil em 1943, doutorado em economia na França em 1948, Celso Furtado foi o mais brilhante pensador brasileiro da geração que fundou o pensamento econômico latino-americano contemporâneo. Quando era jovem, ainda predominava entre nós a economia clássica inglesa, que oferecia os argumentos teóricos para a perpetuação da nossa condição primário-exportadora: o Brasil devia continuar especializado em atividades nas quais era mais eficiente – a agricultura e a mineração – e respeitar uma divisão internacional do trabalho em que as atividades industriais se desenvolviam fora de seu espaço econômico.

Furtado e outros de sua geração enfrentaram o desafio teórico de propor uma nova interpretação da economia internacional e o desafio político de alterar estruturas em nosso país. Não lhes faltou ousadia. Contrariando o saber dominante, afirmaram que o subdesenvolvimento não era uma fase histórica comum a todos os países, mas sim uma condição específica de uma parte do sistema capitalista. A formação de economias industriais no centro do sistema e de economias subdesenvolvidas na periferia eram aspectos de um mesmo processo.

Entregue ao predomínio de forças espontâneas, essa divisão tendia a se reproduzir, aprofundando a distância que separava países e regiões. Em vez de seguir os sinais de mercado, tratava-se, pois, de produzir mutações. A principal delas era a industrialização. Mas a industrialização periférica não poderia repetir a trajetória já conhecida. Era um processo novo, sem precedentes e problemático. Seria realizada em meio a crônica crise cambial e sob tensões inflacionárias, com planejamento e indução do Estado.

Em 1961, no auge desse debate, Celso Furtado publicou Desenvolvimento e subdesenvolvimento, “um apanhado crítico e uma reformulação e ampliação de tudo que escrevi relacionado com teoria econômica no último decênio”. Como mostra Rosa Freire d’Aguiar Furtado na Apresentação desta edição, Celso estava mergulhado na ação, “em plena batalha para implantar as reformas da Sudene, consolidando a instituição que se propunha a acelerar o desenvolvimento do Nordeste. A atividade política e administrativa era intensa.”

Logo vieram sucessivas reedições e traduções do livro, acompanhadas de estudos críticos de eminentes economistas de diversos países. Com o golpe militar de 1964, Celso Furtado teve os direitos políticos cassados e partiu para um longo exílio. Desenvolvimento e subdesenvolvimento não pôde mais ser publicado no Brasil depois de 1965, quando estava na quarta edição. Mas permaneceu como um clássico. Agora, inaugura a coleção Economia Política e Desenvolvimento editada pelo Centro Celso Furtado em parceria com a Editora Contraponto.

César Benjamin

O desenvolvimentismo se está configurando como ideologia do desenvolvimento nacional, no sentido de que exige um processo de diferenciação nacional no quadro da economia mundial. Para desenvolver-se é necessário individualizar-se concomitantemente. [...] Atribui-se, assim, grande importância à autonomia na capacidade de decisão, sem a qual não pode haver uma autêntica política de desenvolvimento. A sincronia entre os verdadeiros interesses do desenvolvimento e as decisões tem como pré-requisito a superação da “economia reflexa”, isto é, exige a individualização do sistema econômico. Essa ideologia transformou a conquista dos centros de decisão em objetivo fundamental. E, como o principal centro de decisões é o Estado, atribui a este um papel básico na consecução do desenvolvimento. [...] Mas, desde já, podemos estar seguros de que o desenvolvimento somente se realizará se se criarem condições para uma participação mais ampla em seus frutos das massas urbanas e rurais.

Celso Furtado

Discurso do Professor Celso Furtado

Local: Auditório Dois Candangos Data: 1º de novembro de 1991

Os novos desafios

O trabalho intelectual que realizei no curso de quatro decênios – razão de ser da honrosa homenagem que hoje me prestam os membros do corpo docente desta Universidade – teve seu ponto de partida no desejo, que cedo me dominou, de descobrir as razões de nosso atraso no processo de industrialização que se afirmou a partir da segunda metade do século XVIII. Desde que percebi o alcance do impacto da Revolução Industrial na divisão internacional do trabalho, captei a gênese do fenômeno do subdesenvolvimento, o que me permitiu montar o quadro conceitual dentro do qual eu construiria o essencial de minha obra. Daí a visão global do desenvolvimento e do subdesenvolvimento como dimensões de um mesmo processo histórico e a idéia de dependência como ingrediente desse processo.

Pareceu-me que, para compreender o processo de formação do sistema econômico que tendeu a mundializar-se e teve como ponto de partida a aceleração da acumulação e do progresso técnico que marcam o começo da era contemporânea, faz-se necessário abarcá-lo de dois ângulos. O primeiro desses ângulos enfoca as transformações do modo de produção, ou seja, a destruição total ou parcial das formas senhorial, corporativa e artesanal de organização da produção, e a progressiva implantação de mercados dos fatores produtivos: mão-de-obra, os instrumentos de trabalho e os recursos naturais apropriados privativamente.

O segundo ângulo concerne à ativação das atividades comerciais ligadas à implantação de um sistema de divisão do trabalho interregional. Nesse sistema, as regiões em que ocorreu a intensificação da acumulação especializaram-se nas atividades produtivas em que a revolução em curso no modo de produção abria maiores possibilidades ao avanço das técnicas, transformando-se em focos geradores do progresso tecnológico. Por seu lado, a especialização geográfica, graças aos defeitos das vantagens comparativas em um mercado em expansão, também proporcionava aumentos de produtividade ali onde se procedia a uma utilização mias eficaz dos recursos produtivos disponíveis, independentemente de avanços nas técnicas de produção. Esses aumentos de produtividade, apoiados essencialmente no intercâmbio externo, serviam de correia de transmissão das inovações na cultura material que acompanhavam a intensificação da acumulação nos países que formavam a vanguarda da Revolução Industrial. Dessa forma, em regiões privilegiadas o progresso técnico penetrou sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população. É verdade que o processo de industrialização em fase subsequente tenderia a universalizar-se mediante o que se chamou de substituição de importações. Mas a industrialização tardia regida pelas leis do mercado tendeu a reforçar as estruturas sociais existentes em razão de sua fraca absorção de mão-de-obra e da forte propensão a consumir dos segmentos modernizados da sociedade.

O subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional.

Essa visão global do processo histórico do capitalismo industrial levou-me à conclusão de que a superação do subdesenvolvimento não se daria ao impulso das simples forças do mercado, exigindo um projeto político voltado para a mobilização de recursos sociais que permita compreender um trabalho de reconstrução de certas estruturas. Daí que eu me haja empenhado, desde a época em que trabalhei na CEPAL nos anos 50, em elaborar uma técnica de planejamento econômico que viabilizasse com mínimo custo social a superação do subdesenvolvimento. Essa técnica objetivava modificar estruturas bloqueadoras da dinâmica sócio-econômica, tais como latifundismo, o corporativismo, a canalização inadequada da poupança, o desperdício desta em formas abusivas de consumo e sua drenagem para o exterior. As modificações estruturais deveriam ser vistas como um processo liberador de energias criativas, e não como o trabalho de engenharia social em que tudo está previamente estabelecido. Seu objetivo estratégico seria remover os entraves à ação criativa do homem, a qual, nas condições de subdesenvolvimento, está coarctada por anacronismos institucionais e por amarras de dependência externa.

Eu tinha consciência de que o verdadeiro desenvolvimento dá-se nos homens e nas mulheres e tem importante dimensão política. Como ignorar que foi porque a partir de 1964 paralisamos nosso desenvolvimento político – em realidade, retrocedemos nesse plano enquanto nossa sociedade crescia e se fazia mais complexa – que nos tornamos um país de difícil governabilidade, que destrói recursos escassos e acumula problemas de forma alucinante ?

A visão global também me fez perceber, desde começos dos anos 70, que a fratura do desenvolvimento se faria mais deformante à medida que se aprofundasse a crise manifesta que aflige a civilização consumista que se planetarizou. Que é inerente a essa civilização um processo depredador, já o sabíamos há tempo: as fontes de energia em que se funda o estilo de vida que ela estimula caminham para a exaustão, eleva-se a temperatura em nosso ecúmero e é progressivo o empobrecimento da biosfera.

Não podemos escapar à evidência de que a civilização criada pela Revolução Industrial aponta de forma inexorável para grandes calamidades. Ela concentra riqueza em benefício de uma minoria cujo estilo de vida requer um dispêndio crescente de recursos não renováveis e que somente se mantém porque a grande maioria da humanidade se submete a diversas formas de penúria, inclusive à fome. Uma minoria dispõe dos recursos não renováveis do planeta sem preocupar-se com as conseqüências para as gerações futuras do desperdício que hoje realiza.

É certo que a engrenagem do subdesenvolvimento constitui um eficiente mecanismo para minorar a pressão sobre os recursos ao reduzir o nível de consumo da grande maioria da humanidade, se bem que também contribua para elevar o coeficiente de desperdício ao difundir padrões de consumo sem correspondência com os baixos níveis de renda das populações. Para assegurar que essa exclusão seja efetiva, em face da excitação a novas formas de consumo que irradiam dos centros culturalmente dominantes e da pressão demográfica nos países pobres, é de presumir que métodos cada vez mais drásticos sejam postos em prática. A pressão financeira exercida sobre os países pobres que caíram na armadilha do endividamento externo parece antecipar os sistemas de controle que poderão ser exercidos no futuro com o objetivo de conter a expansão do consumo no mundo subdesenvolvido.

O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação num curto horizonte de tempo para a lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. Devemos nos empenhar para que essa tarefa maior dentre as que preocuparão os homens no correr do próximo século: estabelecer novas prioridades para a ação política em função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O fantasma do subdesenvolvimento deve ser exorcizado. O objetivo deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária. A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar seria orientada para a busca da felicidade, concebida esta como a realização das potencialidades dos indivíduos e das comunidades vivendo solidariamente.

A idéia nova que começa a despontar é a de responsabilidade dos países que constituem a vanguarda da civilização industrial com respeito às destruições custosamente reparáveis causadas ao patrimônio comum da humanidade constituído pelos bens naturais. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio-ambiente e Desenvolvimento, a realizar-se no Rio de Janeiro no próximo ano, constituirá a plataforma em que pela primeira vez será defendida a tese de que existe uma fatura ecológica a ser paga pelos países que, ocupando posições de poder, se beneficiaram da formidável destruição de recursos não renováveis, ou somente renováveis a elevado custo, que está na base do estilo de vida de suas populações e do modo de desenvolvimento difundido em todo o mundo por suas empresas. Em trabalho recente da CEPAL, apresentado à Conferência de Tlatelolco, no México, foram definidas as responsabilidades dos países ricos em cinco áreas em que é particularmente grave a degradação do meio-ambiente: o esgotamento da camada de ozônio, o aquecimento do planeta, a destruição da biodiversidade nos países do Terceiro Mundo, a poluição dos rios, oceanos e solos, e a exportação de resíduos tóxicos.

A partir de duas idéias-força – prioridade para a satisfação das necessidades fundamentais explicitadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no quadro de um desenvolvimento orientado para estimular a iniciativa pessoal e a solidariedade; e responsabilidade internacional pelo desgaste do patrimônio natural –, será possível desenhar o modelo de desenvolvimento a ser progressivamente implantado no próximo século.

Os objetivos estratégicos são claros:

  • Primeiro: preservar o patrimônio natural, cuja dilapidação atualmente em curso conduzirá inexoravelmente ao declínio e ao colapso de nossa civilização.
  • Segundo: liberar a criatividade da lógica dos meios (acumulação econômica e poder militar) a fim de que ela possa servir ao pleno desenvolvimento de seres humanos concebidos como um fim, portadores de valores inalienáveis.

Esses objetivos devem ser vistos como um projeto cuja realização requer, senão a cooperação de todos os povos, pelo menos a conscientização progressiva da maioria deles. Diante da ameaça de destruição da espécie humana surgida com a acumulação das armas termonucleares, emergiu o embrião de um corpo político que está dando origem a vínculos de interdependência entre os povos que transcendem as relações tradicionais de dominação e dependência. Começou então um longo e difícil aprendizado de convivência entre povos que continuam a confrontar-se por motivos econômicos, religiosos, culturais ou simplesmente a causa de uma herança histórica. Esse corpo político ainda embrionário são as Nações Unidas, organização a que dediquei dez anos de minha vida e onde aprendi a ver o mundo como uma Babilônia de contradições que é ao mesmo tempo uma aldeia em formação, pois forças poderosas alimentam um processo de entrosamento entre os povos, fazendo da solidariedade um imperativo, única alternativa ao desaparecimento.

A ameaça de destruição termonuclear, primeiro, e a hecatombe ecológica que agora começa a configurar-se não deixam aos povos escapatória para sobreviver fora de cooperação. E o caminho dessa cooperação passa pela lógica dos meios, em que a acumulação a tudo se sobrepõe.

Essa mudança de rumo, no que nos concerne, exige que abandonemos muitas ilusões, que exorcizemos os fantasmas de uma modernidade que nos condena a um mimetismo cultural esterlizante. Devemos assumir nossa situação histórica e abrir caminho para o futuro a partir do conhecimento de nossa realidade. A primeira condição para liberar-se do subdesenvolvimento é escapar da obsessão de reproduzir o perfil daqueles que se autointitulam desenvolvidos. É assumir a própria identidade. Na crise de civilização que vivemos, somente a confiança em nós mesmos poderá nos restituir a esperança de chegar a bom porto.

Nesse novo quadro que se configura, o destino dos povos dependerá menos das articulações dos centros de poder político e mais da dinâmica das sociedades civis. Não que o Estado tenda a deliquescer, conforma à utopia socialista do século XIX, mas a possibilidade de que ele seja empolgado por minorias de espírito totalitário se reduzirá, se a vigilância da emergente sociedade civil internacional se faz eficaz. A consciência de que está em jogo a sobrevivência da própria espécie humana cimentará o novo sentimento de solidariedade e favorecerá a emergência da figura do cidadão empenhado na defesa de valores comuns a todos os homens e que sabe que esta luta não comporta discriminações, exceto em defesa da própria liberdade.

Não podemos fugir da evidência de que a sobrevivência humana depende do rumo que tome nossa civilização, primeira a dotar-se dos meios de autodestruição. Que possamos encarar de frente esse desafio sem cegar-nos é indicação de que ainda não fomos privados dos meios de sobreviver. Mas não podemos desconhecer que é imensa a responsabilidade dos homens chamados a tomar certas decisões políticas no futuro. E somente a cidadania consciente da universalidade dos valores que unem os homens livres pode garantir a justeza das decisões políticas.

Fonte:

http://www.unb.br/unb/titulos/celso_furtado.php Doutor Honoris Causa: Celso Furtado

http://www.contrapontoeditora.com.br/produtos/detalhe.php?id=206

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